O número de pessoas sem dentes no Brasil atingiu 14 milhões de pessoas no final da década passada. O número está em uma Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada em 2020 e emite um alerta, haja vista que, dentre outros fatores, em virtude dessa condição, essas pessoas precisam de atendimento específico para várias espécies de tratamento dentário, os quais utilizam técnicas como a do escaneamento intraoral.
Quando um paciente está totalmente sem dentes, as imagens geradas com essa ferramenta possuem usualmente alguma distorção na moldagem sobre implantes, por exemplo. Em determinadas situações, é até impossível que a “leitura” ocorra, isso porque o scanner lê melhor quando há a presença de dentes, pois eles funcionam como pontos de referência, a partir dos quais consegue ir localizando e sobrepondo as marcações. No caso de pacientes desdentados, as marcas anatômicas praticamente inexistem.
O escaneamento é uma etapa importante para diferentes tratamentos, como a confecção de próteses. Pensando nessas dificuldades, um grupo de cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (Uern) e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) se reuniu e, em 2019, finalizou a criação de uma tecnologia inovadora: o “dispositivo para escaneamento intraoral de implantes em arcos edêntulos”, que recebeu, no último dia 19, o patenteamento definitivo.
Adriana da Fonte Porto Carreiro, coordenadora da equipe, explica que o dispositivo é usado como uma espécie de guia. Com ele, o scanner consegue ler o arco sem fazer distorções de imagem. Assim, é gerado um modelo mais preciso para continuidade do tratamento do paciente, sem a necessidade de uma moldagem convencional. A professora do Departamento de Odontologia da UFRN pontua, ainda, que a tecnologia patenteada é destinada para reabilitações orais suportadas por múltiplos implantes, com a versatilidade de se adequar a qualquer quantitativo. A docente salienta que, por meio de um protótipo, o aparelho passou por testes para a comprovação clínica da sua precisão. Porém, atualmente esse modelo está mais próximo do desenho industrial.
“Ele é composto de três partes, que são um pino rosqueável com encaixe bola, o suporte para fixação e união dos corpos de digitalização para escaneamento intraoral e, por fim, uma barra rígida de união universal. Fizemos uma idealização dele em softwares de desenho tridimensional e impresso em material polimérico para os testes clínicos necessários que comprovam a sua utilidade. Possibilita, através da união dos corpos de digitalização, referência óptica para o escaneamento intraoral e, consequentemente, maior precisão na transferência da posição dos implantes para o ambiente virtual. Assim, tal dispositivo vem possibilitando o planejamento digital de infraestruturas para próteses suportadas por múltiplos implantes, com assentamento passivo”, contextualiza.
O invento é fruto dos estudos de conclusão da pós-graduação de Ana Larisse Carneiro Pereira e Rodrigo Falcão Carvalho Porto de Freitas, realizada no Programa de Pós-graduação em Ciências Odontológicas (PPGCO) da UFRN. Ana Larisse descreve que instrumentos como o patenteado conseguem reduzir o tempo clínico com uma produção técnica simplificada, de alta qualidade, tempo de produção e precisão da reconstrução protética, eliminando etapas de separação dos dentes e mesmo de união para solda em boca, comuns no método convencional.
A pesquisadora identifica que a característica do material empregado na confecção do dispositivo, sendo estável e autoclavável, permite a reutilização do sistema sem a perda da funcionalidade. Não bastasse, propicia ainda a correta varredura pelo leitor do scanner intraoral, permitindo uma reprodução digital fidedigna do arco a ser reabilitado. “Tudo isso elimina etapas de prova e repetições, reduzindo o custo, o tempo de produção, bem como o número de sessões clínicas”, salienta. Além das duas, participam como inventores Rodrigo Falcão Carvalho Porto de Freitas, Maria de Fátima Trindade Pinto Campos, Ana Clara Soares Paiva Torres, Jéssica Marcela de Luna Gomes e Eduardo Piza Pellizzer.
Inovação, impacto social e produção científica
Na academia, o processo de patenteamento é um indicativo de inovação. O pressuposto é colocado por Adriana da Fonte Porto Carreiro e, contemporaneamente, tem o valor de estar espalhado em algumas das ações do grupo de pesquisa Tecnologia em Reabilitação Oral, vinculado ao PPGCO e coordenado por ela. Adriana realça que o dispositivo patenteado representa também impacto social em virtude das facilidades propiciadas aos tratamentos. O processo de patenteamento representa também incremento na produção científica dos pesquisadores envolvidos.
Inclusive, as pesquisas que avaliaram os desfechos clínicos que comprovam a aplicabilidade desse dispositivo foram concluídas e resultaram em artigos publicados em periódicos internacionais, trabalhos apresentados e premiados, como é o caso da tese de doutorado da aluna Ana Larisse Carneiro Pereira. Esses indicadores são fortemente considerados na avaliação dos programas de pós-graduação envolvidos no patenteamento de uma forma geral. Um exemplo recente desse entrecruzamento temático é a dissertação do aluno Lucas Cavalcante de Sousa, estudo vinculado ao grupo de Tecnologia em Reabilitação Oral. Nele, busca-se fazer uma avaliação sobre os desfechos clínicos da aplicação de um dispositivo cuja notificação de invenção foi realizada no primeiro semestre deste ano.
“Um dos caminhos que estamos pavimentando cada vez mais é no sentido da ampliação dos estudos, na perspectiva de desenvolver novos dispositivos que simplifiquem ou reduzam etapas clínicas para a reabilitação de edêntulos totais. Exemplo foi que, em 2021, também depositamos uma patente nessa ótica de atuação. Atualmente estamos concluindo um ensaio clínico que objetiva avaliar o impacto do uso do dispositivo na precisão das etapas clínicas e laboratoriais para a reabilitação de pessoas totalmente sem dentes, além de desfechos centrados no paciente, como satisfação e qualidade de vida. Esse último ponto é uma tese orientada por mim, da doutoranda Anne Kaline Claudino Ribeiro”, destaca Adriana Carreiro.
Números
A concessão do grupo de odontologia é a primeira recebida pela UFRN em menos de quatro anos. A diminuição do lapso temporal entre o depósito e as expedições de cartas-patente já vinha sendo sentida: considerando os últimos 12 meses, metade delas ocorreu em menos de cinco anos. Embora ainda pareça ser um tempo elástico, as concessões anteriores a 2021 raramente conseguiam esse “desempenho”.
“Essa é a nossa 70º concessão e ficamos felizes que ela também seja a que seguiu o processo mais rápido. Entretanto, esse pódio deve ser modificado intensamente nos próximos meses, já que começamos a usar a opção de ingresso no trâmite prioritário do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, modalidade de fluxo que busca reduzir os prazos de concessão. Essa medida está sendo adotada em reconhecimento à necessidade de, no mundo acelerado em que estamos, tentarmos também apressar os processos de proteção dos nossos ativos, impactando os processos de transferência de tecnologia, que é nosso objetivo maior. Esperamos diminuir o tempo para recebermos as concessões para menos de três anos”, explica o diretor da Agência de Inovação da UFRN, Jefferson Ferreira de Oliveira.
O “trâmite prioritário” envolve todas as atividades do processo de patente – desde a apresentação da documentação para o depósito até o fim da tramitação no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Segundo o órgão, a admissão ou não do trâmite prioritário não interfere em nada no seu direito patentário. Assim, independente do resultado, a patente continuará vigente até sua extinção e o titular deve seguir atendendo as demais responsabilidades relacionadas com seu direito definidas em lei. Para ter direito à prioridade, o Inpi elenca algumas modalidades, uma delas beneficia os processos pertencentes a instituições científicas, tecnológicas e de inovação.
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